6.30.2007

A culpa deve ter sido da "menina"

Um atirador exímio na "G-3", que "não falha o alvo até cem metros", aponta para o pneu e acerta na cabeça do condutor

São 18 horas de 1 de Maio de 1990. Inês Ramalhete, uma viúva de 74 anos, moradora no Bairro da Encarnação, vai para as rezas do mês de Maria quando lhe surge um rapaz que, sem uma palavra, lhe põe uma mão no ombro, lhe tira a mala e desaparece. Miúdos que brincam por ali anotam a matrícula do carro em que o ladrão fugiu.

Na esquadra da PSP fica assente a queixa do roubo "por esticão" de uma mala de mão preta com 200 escudos e uns óculos bifocais. Também fica registado que o Fiat Tipo, matrícula UJ-26-76, no qual "o indivíduo, após consumado o facto, se pôs em fuga, não constava no ficheiro da PSP para apreender".

Na zona está uma brigada especial, "à civil", da Divisão de Trânsito, dirigida pelo subchefe Padrão. Com ele, num Fiat Abarth de grande cilindrada, estão Américo Oliveira, o "corredor", e Hélder Carvalho, o "atirador", o único com ordens para utilizar a G-3, ou "menina", como os polícias lhe chamam. Ao passar na rua Cidade de Matola, vêem o Fiat Tipo. "Nem precisámos de nos identificar para ele se pôr em fuga", conta Padrão. A perseguição ganha velocidade na zona de moradias dos Olivais, onde os polícias afirmam ter usado a sirene e o pirilampo luminoso. Acaba na Rua Cidade Porto Amélia, depois de todos os membros da brigada dispararem as suas armas.

Um morador diz que ouviu "de cinco a dez tiros". Houve no mínimo três: um rebentou o pneu direito traseiro do Fiat Tipo, outro deixou um projéctil cravado na janela de uma casa do lado esquerdo da rua, a escassos centímetros de uma criança, e outro perfurou o crânio do fugitivo. Na rua são unânimes: só perceberam que os três homens eram polícias quando se identificaram. Ninguém ouviu uma sirene e ninguém viu o "pirilampo".

Em Janeiro de 2001, na 2.ª Vara do Tribunal da Boa Hora, tem lugar a primeira audiência do julgamento que visa apurar responsabilidades na morte do condutor do Fiat Tipo, Rui Matias de Oliveira, 24 anos, um toxicodependente em cujo cadastro, sobretudo à conta de incursões nos haveres familiares, se encontram processos de cheques sem provisão, falsificações, pequenas burlas e o furto de um automóvel.

Ao longo de quase onze anos em que o processo ganhou volume e pó, o número de arguidos variou. A PJ chegou a imputar o crime aos três membros da brigada, mas só Carvalho se sentou no banco dos réus, acusado de homicídio qualificado (pena de 15 a 25 anos). Admitindo ser o autor do disparo fatal, Carvalho não admite que tenha sido fatal de propósito. Atirador exímio - todos os colegas e superiores chamados a depor afirmam "ser capaz de, com a G-3 na posição de tiro a tiro, pôr a bala onde quer, a cem metros" -, afirma que visava o outro pneu traseiro.

Só que a bala entrou pelo lado esquerdo da cabeça da vítima - "Ele devia estar a olhar para trás", aventam os polícias - e desapareceu com o seu rasto, ou seja, os fragmentos da zona occipital despedaçada pela sua saída que deveriam estar dentro da viatura. É que foi a mesma brigada que tomou conta da ocorrência e, após certificar a morte do ocupante, levou o Fiat Tipo para a esquadra de Santa Marta, onde foi "limpo" e até, confessa o arguido, aspirado.

Do processo consta o testemunho de um agente da PJ a quem Carvalho terá dito que "a bala foi parar à lixeira". O próprio desmente, como nega a afirmação do subchefe de que não lhe deu ordem para disparar nem para limpar o carro do morto.

Desmentidos e mentidos abundaram nas três sessões do julgamento em que acusação e defesa apresentaram os seus casos. Mas duas ou três coisas ficaram claras. Uma é que, seja quem for que deu a ordem, os três membros da brigada dispararam contra um fugitivo que não estava armado, não constituía perigo para terceiros nem para os agentes e conduzia um automóvel menos veloz que o dos perseguidores. "Gosto sempre de disparar", afirma Padrão. Outro facto que ficou claro é que é possível que uma brigada da PSP envolvida num homicídio possa tomar conta da ocorrência, "perder" provas e apresentar testemunhos contraditórios sem ser acusada de obstrução à justiça e perjúrio nem sofrer qualquer punição disciplinar permitindo até que o advogado de defesa, pago pela corporação, releve que, apesar do desaparecimento de parte da cabeça da vítima, "aqui não se tratou de decapitação".

Outra conclusão ainda é que, a crer nas palavras da representante do Ministério Público, que tem a seu cargo a acusação, quanto mais tempo passa entre um crime e o seu julgamento mais a pena deve ser atenuada. Porque "uma perseguição movida durante muitos anos passa a ser vingança e não justiça". Eis um perigo que não se corre com esta sentença.


DN, 07.03.2001